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quinta-feira, 8 de março de 2012

As Mulheres do MMA ( Mixed Martial Arts )

CONTROLE DE SI, DOR E REPRESENTAÇÃO FEMININA ENTRE LUTADORES(AS) DE MIXED MARTIAL ARTS

Autores: Samuel Oliveira Thomazini, Cláudia Emília Aguiar Moraes e Felipe Quintão Almeida

Pensar a Prática, Vol. 11, No 3 (2008)

RESUMO

Esta é uma pesquisa realizada em três academias especializadas em Mixed Marcial Arts (MMA), em que se analisa alguns elementos indispensáveis à forja identitária de lutadores dessa modalidade. A etnografia durou sete meses, oportunidade para combinar uma observação participante, devidamente registrada no diário de notas, com a realização de entrevistas semi-estruturadas com atletas. Fotografias e filmagens dos locais de treinamento e de competição foram recursos metodológicos também úteis. Os resultados indicam a existência de processos bioidentitários vinculados ao controle de si e à racionalização da dor, apontando, além disso, para uma representação ambígua da presença feminina em um universo ainda predominantemente masculino.

O CONVÍVIO OU A RACIONALIZAÇÃO DA DOR: NO PAIN, NO GAIN!

Se a coragem, a ousadia, a valentia e a técnica apurada são pré-requisitos para se tornar um(a) lutador(a) “casca grossa”, o caminho percorrido para alcançar tal status deve ser trilhado “sobrevivendo-se” a um treinamento que impõe, entre outras regras já constituídas pelo grupo, a convivência diária e constante da dor. Suportar as intermináveis dores em partes diferentes do corpo, sem ser persuadido a desistir do seu propósito ou mesmo enfraquecer o espírito e o corpo guerreiro (NUNES, 2004), se torna uma “regra” de conduta, um modo de operar, possibilitando um reconhecimento coletivo capaz de transformá-lo em um(a) legítimo(a) representante desta casta, os homens de ferro (GASTALDO, 1995) (mulheres de ferro, porque não!).

O reconhecimento da dor como elemento intrínseco à construção do corpo do(a) guerreiro(a) ou do(a) gladiador(a) é um pré-requisito comum não só aos lutadores/lutadora de nosso campo de trabalho, mas trata-se de um componente fundamental da forja de qualquer praticante de esporte de combate (WACQUANT, 1998, 2002; CECCHETO, 2004; GASTALDO, 1995; NUNES, 2004; TURELLI; VAZ, 2006) ou esporte de caráter mais viril, como o rúgbi (RIAL, 1998)4. Ela parece ser, como Wacquant (1998) aponta, uma companheira inseparável daqueles que praticam estes esportes: “Os pugilistas devem também aprender a controlar e a conviver com o desconforto físico, com a dor e com os ferimentos” (WACQUANT, 1998, p. 84). Nas palavras do lutador B, “Isso aí a gente tem que aprender a conviver. O bom é você saber porque você está sentindo dor”. Para o lutador A:

Geralmente o atleta está com alguma coisa doendo, ou o joelho, a coxa, a canela, mão, dedo, sempre tem alguma coisa, você nunca treina 100%, não tem jeito. É um esporte de contato, de impacto, não tem como você não estar com um tostãozinho, uma torçãozinha no dedo, ou no cotovelo, uma bursite, alguma coisa está doendo, não tem jeito cara. A gente vai se virando: está doendo ali, força mais com a outra, está doendo a perna, chuta mais com a outra e protege a que está doendo e vai embora.

Muito embora os autores com os quais trabalhamos associem este aprendizado como medida simbólica da masculinidade dos lutadores, trata-se de um requisito que é comum também ao universo da lutadora de MMA que entrevistamos: “Dor é o tempo inteiro, é um chutando sua perna, sua cabeça e machuca a articulação, ameniza com gelo e às vezes com antiinflamatório. Temos um fisioterapeuta na nossa equipe que nos ajuda nisso” (Lutadora).

Como afirmam Turelli e Vaz (2006, p. 6), desenvolve-se nos espaços em que se praticam artes marciais e/ou esportes de combate, independente do sexo, uma poderosa pedagogia da dor e do sofrimento, que “[...] não é apenas aceita, mas considerada autêntica, com processos que a legitimam e com implicações para a educação do corpo. A dor em si é algo frente ao qual se deve ser indiferente, algo com o que se deve saber conviver”. Antes de ser entendida como uma expressão irrenunciável da corporalidade, ela passa a representar um obstáculo a ser suportado, superado, ou, inclusive, tornado fonte de prazer (VAZ, 2001; RIAL, 1998).

Nas academias de MMA investigadas, está em jogo uma educação do corpo em que o trabalho pedagógico que ali acontece tem por função substituir um corpo não acostumado com pancadas por um corpo estruturado e fisicamente remodelado conforme as exigências da prática em questão. Sendo assim, os(as) lutadores(as) criam estratégias para sublimar a dor e suportar o sofrimento. Por um lado, procuram mitigá-la através do uso de medicamentos diversos, analgésicos, sprays, pomadas, ataduras, bolsas térmicas, equipamentos de proteção, enfim, uma série de artimanhas cujo propósito não é cessar a fonte da dor, mas permitir que o treinamento continue, mesmo com ela: “Claro, todo atleta sente em locais específicos. Tomo antiinflamatório, infelizmente uma automedicação, não tem como ficar indo no médico toda a semana por causa de uma dor, aí a gente usa uma pomada analgésica, um antiinflamatório, gelo” (Lutador E).

Por outro lado, conforme já haviam observado Nunes (2004) e Gastaldo (1995), os(as) atletas empregam técnicas que objetivam o fortalecimento das regiões mais atingidas, como a aplicação de golpes no colega de treino com o intuito de ele os assimilar melhor, até o momento de o corpo tornar-se indiferente ou resistente às investidas do(a) parceiro(a) de treino. Não surpreende que, na avaliação da lutadora de MMA, “Lutar na academia é um vale tudo todos os dias porque você se quebra treinando; acho que o treinamento é a parte mais difícil da competição; você conseguir agüentar aqueles dias de treinamento, tomando pancada, tomando bronca do treinador” (Lutadora).

No universo investigado, o treinamento sparring aparece como o exercício mais “vivo” desse aprendizado e convívio com a dor, na medida em que se o vivencia, várias e várias vezes, antes da luta propriamente dita. Como pudemos notar, os treinos sparring podem se tornar tão intensos, desafiadores e penosos que, perto deles, a luta parece mais fácil. De acordo com um de nossos informantes:
O sparring que a gente faz, é o que eu ia falar, nosso treinamento é muito mais difícil que a luta. A luta em si o máximo que ela vai durar é quinze minutos, um treino dura em média duas horas, você faz cinco ou seis sparrings como se fosse a luta em si; então o treino é muito pior em si, porque é como se estivesse lutando, só que com várias pessoas (Lutador A).

Nessas circunstâncias, o sparring não prepara o corpo para o pior (que está por vir). Ele é o pior! O resultado é que, além de preparar o corpo do(a) guerreiro(a) para o combate, ele minimiza os possíveis danos que o(a) atleta pode sofrer devido às investidas do(a) adversário(a). Embora aos olhos do espectador neófito isso possa parecer uma vã brutalidade irracional ou uma orgia selvagem, constitui o efeito de um plano racional, composto de táticas e estratégias que, mesmo sendo muito violentas e dolorosas, nem por isso deixam de ser muito controladas e metódicas.
Após assistirmos ao vídeo de um dos sparrings filmados, ficamos impressionados com a cooperação antagônica e/ou cláusulas não-contratuais que unia os dois lutadores naquela sessão meticulosa de treino: o lutador sabia em que local bater, com qual intensidade, quando devia recuar, se afastar, deixar o companheiro respirar um pouco, em suma, é dotado de um senso prático, corporal, mimético, que o coloca em condições de alcançar uma justa medida entre o leve e o pesado, em condições de garantir um treinamento duro mas sem grandes consequências à integridade física do seu colega de treino.




Essa aprendizagem radical da dor que acontece no sparring serve ainda para fomentar, entre os(as) lutadores(as), um domínio das emoções desencadeadas pelas trocas de socos e pontapés, bastante intensas em um combate de campeonato. Este trabalho emocional, associado à racionalização da dor física, é mais um poderoso elemento da constituição identitária do(a) lutador(a) de MMA (WACQUANT, 2002).

MULHER NO RINGUE: O QUE ELES ACHAM, O QUE ELAS PENSAM?

Estudos demonstram que o ambiente das academias de esportes de combate e/ou artes marciais é dominado por uma cultura masculina, permeada, no dizer de Gastaldo (1995), por uma semântica da virilidade que considera a presença feminina uma afronta à ordenação simbólica daquele universo. Em nossa pesquisa, a dissonância cognitiva encarnada nas mulheres também esteve presente. Ela manifestou-se na representação, conforme Ceccheto (2004) já havia observado, segundo a qual as mulheres têm uma tendência para a fraqueza e para a pouca resistência, o que dificulta o envolvimento delas em uma prática na qual se exige muita força e resistência. O lutador C assim se manifesta a respeito:

Para ser sincero acho ridículo. [...] acho que o MMA não está envolvido diretamente com mulheres. O esporte para a mulher seria o judô, o jiu-jitsu, o taekonwdo; acho que a mulher não tem essa agressividade que o homem tem a ponto de disputar o MMA, então não acho certo ou tão eficaz a mulher praticar o MMA.

O depoimento anterior revela não somente uma posição tipicamente de gênero (o esporte como produtor de corpos generificados), em que as mulheres são autorizadas a praticar os esportes mais adequados à sua “essência” – então incompatível com a ética do sacrifício (WACQUANT, 2002) imanente à preparação de um lutador desta modalidade –, mas também evidencia que a noção de agressividade ou virilidade está associada à masculinidade. Ao defender seu cargo de lutador contra a feminilização é a idéia mais “profunda” de si mesmo como homem que ele está pretendendo proteger, afinal, a cultura em que está inserido associa quase a totalidade de seu valor como lutador, perante a si próprio e aos demais, graças à imagem da virilidade.

A presença feminina parece embaralhar essa representação. Soma-se a essa representação o fato de que, no mercado de bens simbólicos dominado pela visão masculina (BOURDIEU, 2007), como é o caso dos esportes de combate, a mulher é sempre vista pelo olhar do dominante, o lutador, que a avalia pelas características que ele tem e ela não. Na medida em que a mulher conquista tais características, e os valores a elas associados, o fundamento do discurso masculino torna-se (ainda mais) insustentável.

Um grupo de lutadores, sem perder de vista esta representação negativa relacionada à presença feminina entre os praticantes de MMA, chega mesmo a delimitar “seus lugares” neste espaço. Por um lado, sua presença é legítima quando desfila sua beleza e suas formas nos intervalos entre os rounds de um combate, distraindo o público e os próprios lutadores (Lutador C); por outro lado, sua permanência é tolerada quando assumem uma postura de subordinação em relação aos atletas.

As “Marias-tatames” são um exemplo desse caso, pois sua representação entre os lutadores corresponde à “[...] percepção da mulher como inelutavelmente interessada nas vantagens proporcionadas pelo lutador, ou melhor, pelo seu corpo, para protegê-la ou sustentá-la” (CECCHETO, 2004, p. 171). Afinal de contas, “Qual mulher que não gosta de ver um cara saradão ali de guerreiro; tem mulher que não gosta não, mas a maioria gosta. Mulher gosta de Homem né bicho, pegada forte” (Lutador D).

Tem muita mulher que gosta de lutador, não vou dizer que são todas, mas te digo que não sei se é pela sensação de segurança que o lutador do lado pode passar, ou até mesmo pelo porte físico, ou até mesmo por está ali no meio da galera, aquela coisa toda, enfim, é fato que atrai, sendo “Maria-tatame” ou não (Lutador E).

A despeito desses constrangimentos normativos sobre a presença da mulher no esporte, conseguimos identificar nas academias investigadas representações masculinas que conseguem romper com aquelas hierarquias de gênero predominantes, a ponto de alguns lutadores verem com “naturalidade” a presença feminina nos ringues de MMA: “Eu acho bacana, eu admiro muito, não é fácil não, não só com o preconceito que é muito grande, mas é que elas treinam com homens porque não têm mulheres para treinar, a não ser isoladamente em outras artes [marciais]” (Lutador F); “Eu vejo como qualquer outro atleta. Minha irmã, por exemplo, eu vejo como qualquer outro atleta meu; não tem diferença entre homem e mulher; é como qualquer outro esporte” (Lutador A).

O depoimento de um dos treinadores chega mesmo a apontar para o caráter contingente das representações de gênero: “O esporte é pra todos, desde que lutem mulheres com mulheres e homens com homens. Existem mulheres bastante agressivas e homens sem nenhuma agressividade” (Treinador Y). Essa igualdade discursada entre os gêneros era notável, sobretudo, naqueles momentos de sparring em que o lutador A e a lutadora se enfrentavam no ringue. A trocação era realmente bastante intensa entre eles, pouco importando ao lutador se do outro lado estava uma mulher, que ainda por cima era sua irmã biológica. O fato de a lutadora encarar o momento mais árduo de toda a preparação (o sparring) enfrentando um homem minimiza as diferenças socialmente construídas entre os sexos, estremecendo, assim, o mito da fragilidade feminina.
Para nós, espectadores daquela situação, quando a lutadora estava no sparring com um homem, mais do que sua beleza e curvas, os atributos destacados eram sua força, coragem, ousadia, garra e seu destemor em lutar com outro homem (maior e mais pesado), todas essas qualidades que seriam postas à prova no combate com outra guerreira, durante um campeonato. As iniciativas como a da lutadora de MMA contribuem para se definir novas formas de ser mulher, dando visibilidade, como disse Aldeman (2003), a outras representações da feminilidade. Nos dizeres da própria lutadora:

Mulher tem aquela mania: ah, não vou lutar não porque sou frágil; eu acho que as pessoas vêem a luta para a mulher dessa forma e não é assim. A mulherada se acha delicada demais, muito fresca para treinar; a luta tem a característica de ser grosseira e a mulher tem a característica de ser o sexo frágil; não é assim, a gente é batalhadora e guerreira como os homens (Lutadora).

No caso da lutadora de boxe, essa reinvenção da feminilidade e da própria fisicalidade (DEVIDE, 2005) passa pela necessidade de ela ser mais durona, pois, segundo suas próprias palavras:

Eu ainda me sinto um pouco com o coração mais aberto, então tô tentando cada vez mais endurecer meu coração, não ter mais peninha das oponentes; agora é mandar porrada e cair dentro, senão é a gente que toma. [...] Porque você não pode ter pena da pessoa, ela não vai ter de você, então tem que ser pior que ela, meter a porrada logo pra ela desmaiar, senão vou permitir ela fazer isso comigo. Sangue azul é sangue frio é a mesma coisa de coração de pedra.

Essas mulheres forçudas (GOELLNER; FRAGA, 2003) do século XXI desnaturalizam, em suas práticas, as diferenças sexuais e, por conseqüência, de inferiorização feminina neste espaço “naturalmente” concebido como masculino. Fazem isso sem precisar assumir posturas masculinizantes5, normalmente associadas àquelas que se “aventuram” em espaços tradicionalmente vistos como não apropriados para elas.

Palavras Finais
Analisamos, neste artigo, alguns elementos que se mostraram relevantes à formação identitária dos lutadores e lutadora de MMA. Apresentamos o duplo ethos que os(as) atletas precisam assimilar para serem reconhecidos(as), entre seus iguais, como guerreiros(as) e “verdadeiros(as)” lutadores(as).

Uma característica importante desse duplo ethos é que ele “atravessa”, por assim dizer, os corpos dos(as) atletas, seja porque exige deles(as) um domínio de si cujo resultado é a transformação de seus corpos potencialmente explosivos em armas-brancas (pautado pela moral segundo a qual a briga fora dos ringues é coisa de marginal), seja porque implica em uma introversão do sacrifício que é naturalizada graças ao desenvolvimento de uma pedagogia baseada no controle e na racionalização da dor. Esse duplo ethos, ao ser assumido também pelas mulheres, desmitifica a idéia de que elas têm uma “essência” ou identidade que é incompatível com a prática dos esportes que envolvem um contato corporal mais acentuado, como é o caso dos esportes de combate.

E por falar em mulheres, a investigação identificou a existência de uma representação ambígua associada à presença feminina nas academias investigadas: ao mesmo tempo em que as academias são espaços de afirmação dos ideais predominantes de masculinidade, em que as mulheres ou são estigmatizadas como existências estranhas naquele universo ou como presenças submissas aos homens, alguns lutadores consideram a presença do sexo (não tão) “frágil” entre os ringues uma conquista que deveria ser respeitada e valorizada, sem que elas precisem ser assimiladas ao igual, perdendo, assim, sua própria alteridade.

Essa representação, aliada às estratégias e táticas empregadas pelas mulheres na batalha diária do treinamento, é um importante passo na direção de romper, nos esporte de combate, com aquilo que Goellner (2006) denomina de estética da contenção: “[...] nada de excessos, nem de gorduras, nem de músculo, nem de ousadias, nem de inserções em espaços que parecem não ser seus”. As meninas de nosso campo são excelentes exemplos de que, além de belas, as mulheres podem também ser literalmente fatais.


Fonte: ProntopraGuerra !

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